Na fila da adoção

on quinta-feira, 4 de março de 2010

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JORNAL DE JUNDIAÍ SONHO Crianças à espera de uma família
"Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero..."



("A Casa", de Vinícius de Moraes)



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Acordar, tomar o café da manhã e um banho quentinho. Ir para a escola, pegar o caminho de volta, almoçar, fazer o dever de casa. No fim da tarde, tem banho de novo e janta saborosa. Quando as estrelas e a lua tomam conta do céu, é hora de dormir. A cama, aconchegante, está à espera. Amanhã é dia de começar tudo de novo. Esta é a rotina de boa parte das crianças e adolescentes de Jundiaí - quem não mora na rua, segue cada um desses passos diariamente. Em um ponto, no entanto, as histórias se diferenciam: nem todos têm um lar com pai e mãe em que possam acordar e aonde vão voltar ao fim do dia. Muitos viviam em uma casa como a descrita na música ´A Casa´, do poeta Vinicius de Moraes, até chegarem a um abrigo.

Mesmo caminho - A Casa de Nazaré é um deles. O local atende 20 meninos e 12 garotas, entre os quais seis são adolescentes que aguardam por uma família. Com nomes diversos, eles compartilham o mesmo caminho e rezam para ter um futuro melhor. Os seis jovens moram em abrigos desde quando eram pequenos. E viram a vida passar pelas janelas de orfanatos. As chances de alguém querer levar um adolescente para casa são raríssimas. Na fila da adoção em Jundiaí, cerca de 140 pessoas esperam por um filho. Bebês brancos e sadios são os mais procurados. Crianças negras e com problemas de saúde estão no fim da lista - mas ainda passam na frente dos jovens. "Não há procura por adolescentes", ressalta o juiz da Vara da Infância e Juventude de Jundiaí, Jefferson Barbin Torelli.

Na Casa de Nazaré - mantida por meio de convênios com a Prefeitura, o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e doações - há duas casas, com dois quartos cada. "Se estão disponíveis para a adoção, é porque esgotaram-se todas as possibilidades de eles voltarem para a família", aponta a coordenadora da Casa, Maria Aparecida da Silva.




O menino só - R. vive em orfanatos desde que tinha 5 anos. A mãe perdeu sua guarda porque era alcoólatra. Ele tem uma irmã que, na época da separação, conseguiu mudar-se para a casa de uma tia, onde mora até hoje. Aos 7 anos, ele viveu um momento de esperança. Uma mulher, solteira, quis adotá-lo. Ele chegou a ir, mas depois voltou atrás. "Não sei o por quê. Preferi voltar ao orfanato", lembra.

O menino sorridente se mostra acanhado quando fala de si. Prestes a completar 18 anos, ele terá de deixar a Casa em breve - o local só atende crianças e adolescentes até esta idade. "Minha família é a instituição", reflete R., que estuda e já trabalha, mas pouco experimentou morar em um lar. O futuro publicitário, webdesigner ou jogador de futebol tentará de novo - uma família que vai adotar outras crianças deverá levá-lo. Mas não há nada definido. "Se não der certo, vou ter de arrumar uma casinha. Seria bom ter uma família de novo. Um dia ainda vou ter um quarto só para mim."

Paz, amor e carinho - W., 13 anos, reza todos os dias para ter uma família que o ame. Ele mora no abrigo com o irmão de 9 anos. A mãe não tinha como sustentá-los. Hoje, está presa por roubo. "Não tenho lembranças da minha mãe. Sinto raiva e só agradeço por ter me feito crescer longe das drogas", diz. Ele gostaria de ter um lar para viver em paz, no qual houvesse carinho de sobra. "Quero uma família que me ame, que eu ame e que dê valor a mim." O adolescente espera ter um futuro diferente do que traçou a própria família. "Não quero ser um ´zero à esquerda´ como meus pais", critica.



A vez deles - Um tem 16, outro tem 12 e o terceiro conta 7 anos de vida. O mais velho, P., assumiu a figura de chefe da família. Com F., ele foi deixado pela mãe na porta da Casa Transitória. Na época, tinha a idade do irmão mais novo: 7 anos.



Irmãozinho - Na fila por uma família, eles ganharam mais um companheiro. Longe de casa, a mãe engravidou e deixou no abrigo, ainda bebê, W., o caçula. "Chegou um bebê e perguntamos quem era. A moça respondeu: seu irmão", recorda-se P. As drogas afastaram a mãe dos filhos. Nem ao pai eles puderam recorrer. "Eles viviam separados e, anos depois, meu pai morreu." Os meninos acostumaram a assistir à movimentação nos abrigos, estagnados. A mãe nunca foi visitá-los. "Apareciam pessoas para levar as outras crianças e nós ficávamos lá. Pensava: será que não vai aparecer alguém melhor que a minha mãe? Mas, na verdade, não aparecia ninguém."

P., F. e W. têm uma irmã mais velha, que hoje é mãe e está casada - no entanto, por falta de condições, ela não deve buscá-los. Mas a idade e o fato de serem três não são empecilhos para os sonhos dos irmãos. "Confio que pode surgir uma família que queira nos adotar. Ficaria muito feliz. Ia me divertir, brincar com eles e amá-los muito", promete F.



Quatro caminhos - Fisicamente eles nem se parecem. Um é branco com cabelos pretos, outro é moreno de cabelos lisos. Uma é morena de cabelos encaracolados, a outra é branca de cabelos loiros. Mas L., 17; G., 16; T., 15, e V., 9, são filhos da mesma mãe e frutos do mesmo rumo - a vida no orfanato. Os irmãos já se desencontraram, mas há alguns anos moram juntos na Casa de Nazaré. L. é o único que não quer ser adotado. "Agora que vou ficar independente, não vou para uma nova família", afirma o adolescente, que estuda e já trabalha.

V., o menor, pensa diferente. "Queria muito ser adotado, mas só se todos os meus irmãos fossem junto." Os quatro viviam na rua e mal tinham o que comer. Carinho e cuidado não faziam parte da suas rotinas, por isso, a Justiça achou melhor tirá-los das mãos da família. A menina G. mostra que conhece a realidade. "Queria que fôssemos adotados juntos. Mas se não adotam nem um adolescente, imagina três e mais uma criança? É improvável. Já apareceram pessoas para adotar dois de nós, mas nunca os quatro." Sem acreditar que ficarão juntos, construir o próprio destino e ver o outro feliz são os únicos sonhos dos quatro irmãos.

ROBERTA BORGES
Fonte: Jornal de Jundiaí

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