Adoção tardia: grande desafio

on quarta-feira, 28 de julho de 2010

A partir do próximo dia 27 começa, em São Paulo, um grande mutirão para oferecer um lar à maioria das 13 mil crianças que hoje vivem provisoriamente em abrigos. De acordo com o que manda o Estatuto da Criança e do Adolescente, eles têm direito a um lar. Conheça a nossa realidade.
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MATEUS VIEIRA "Quero acreditar que nossas crianças serão acolhidas. Elas têm o direito de olhar para alguém e dizer: pai, mãe"
A partir do dia 27, a Justiça de São Paulo vai realizar um mutirão em todos os abrigos do Estado de crianças e adolescentes para garantir um ponto fundamental do Estatuto da Criança e do Adolescente: o direito do convívio familiar. A ação vai reavaliar a situação de cada um dos 13 mil abrigados do Estado. A ofensiva é fortalecida pela nova lei de adoção, que acrescentou ao ECA, no final de 2009, dois pontos importantes: ninguém pode ficar em abrigos por mais de dois anos e todos têm direito a ter a situação reavaliada a cada seis meses. Em Jundiaí, não é diferente. Os abrigos da cidade acompanham a realidade dos demais.



Um desses abrigos, a Casa de Nazaré, vive com mais de 30 crianças e adolescentes em situação de adoção. A entidade é a vida de Maria Aparecida da Silva, coordenadora e uma das fundadoras da casa. Surgiu por meio de reuniões de um grupo de oração na Cidade Vicentina Frederico Ozanam. Depois, o grupo migrou para a Catedral Nossa Senhora do Desterro. Esses ´abnegados´ queriam ´servir´ os excluídos e não sabiam como. Em 2001, o Padre Venilton Calheiros, que era pároco da Catedral, acompanhou o grupo e junto com essas pessoas decidiu trabalhar com os que não tinham chance de adoção. A proposta era formar uma família com essas crianças e o projeto seguiu esta direção. As primeiras crianças chegaram e o grupo passou por três locais diferentes. Mais tarde, uma área foi doada para a construção das casas para abrigar as crianças. Acompanhe os principais trechos desta entrevista:



Jornal de Jundiaí - Como vocês consolidaram esse trabalho da criação da Casa?
Maria Aparecida: Em 2002 nós recebemos as primeiras 12 crianças com um casal que veio atuar como missionário. Nos foi cedido um espaço no Bairro da Roseira e, posteriormente, uma alemã doou um terreno para a construção das casas, onde o grupo permanece hoje.



JJ: Qual foi a história de início que a marcou?
Maria Aparecida: Foi a primeira história de vida com a qual tive contato. A história começou com o acolhimento de duas irmãs adolescentes, Mariana* (nome fictício) e Márcia* (nome fictício). As meninas sofreram muito no início, assim que chegaram à casa. Elas não queriam ficar porque não queriam se afastar dos irmãos, que estavam em outro abrigo. O irmão mais velho delas, Ricardo* (também nome fictício), que estava em uma outra entidade em São Paulo, veio visitá-las e quis ficar na Casa junto com as irmãs. Havia mais um irmão que estava na Casa Transitória, em Jundiaí, com cerca de três anos. Começou aí uma luta para que todos pudessem ficar juntos na mesma entidade. Após apelos e conversas com o Poder Judiciário, Dr. Jeferson Torelli (juiz da Vara da Infância e Juventude), permitiu a transferência do mais novo e os quatro irmãos ficaram, enfim, juntos.



JJ: Foi assim que nasceu o ´verdadeiro´ espírito da Casa?
Maria Aparecida: Sim. O sonho dos quatro era um dia reconstruir a família e, apesar da idade mais delicada dos mais velhos, com cerca de 10 e 11 anos (na época), respectivamente, queriam todos ser adotados juntos.



JJ: Uma tarefa quase impossível...
Maria Aparecida: Sim. Ricardo*, então, fez 18 anos e foi morar com uma família, em 2008. Este ano, a Mariana* completou também 18 anos sem uma família que a acolhesse. No entanto, ela já estava trabalhando como menor aprendiz e seguiu sua vida. Já Márcia* teve uma situação mais complicada. Fez um acompanhamento na Fazenda da Esperança (para recuperação de drogas) e tornou-se missionária. A situação era essa: Ricardo* completou 18 anos e saiu, Márcia* era missionária na Fazenda Esperança, Mariana* e João Paulo* permaneciam ainda na casa.



JJ: E daí?
Maria Aparecida: Nesse meio tempo participamos de um Congresso sobre adoção: ´A espiritualidade e o papel da Igreja com os acolhidos´ . Nesse Congresso eu conheci um casal de Joinville (Santa Catarina) que já estava na fila esperando um bebê há alguns anos e acabou se encantando com a história desses irmãos. O casal então veio conhecer o João Paulo*, o menor, com a intenção de adotá-lo. Quando o casal chegou se encantou com a irmã também, a Mariana, e pediu a adoção dos dois. Hoje eles estão em Santa Catarina e reinseridos em uma família.



JJ: Mas os irmãos mantêm contato?
Maria Aparecida: Claro. Passam férias juntos, visitam uns aos outros. Embora não morem todos juntos, estão encaminhados.



JJ - Quantas crianças e adolescentes a Casa hoje mantém e qual é o custo disso?
Maria Aparecida: Hoje há 33 crianças e adolescentes, que é nossa disponibilidade física. O custo mensal gira em torno de R$ 55 mil. É alto porque os abrigos se reordenaram e, por isso, é necessário uma equipe técnica e funcionários. Temos psicólogos, assistentes sociais e ainda uma professora, que é enviada pela prefeitura. Temos uma diretoria que é totalmente voluntária, mas nesse custo temos ainda atendimentos externos para os maiores. Todos frequentam escola, praticam esportes e têm atendimento terapêutico em outras instituições, como Apae, Ateal.



JJ: Como vivem?
Maria Aparecida: São cinco casas com crianças. Em uma estão os bebês e é onde eu moro. Nas outras quatro casas são oito crianças por casa. Cada casa mantém cuidadoras. Eu cuido sozinha dos bebês à noite. As casas exigem manutenção, muitos remédios ultrapassam o valor das doações e temos que comprar.



JJ: Adoção ainda é tabu?
Maria Aparecida: Infelizmente. O bebê, quando disponível para adoção, o Fórum busca no cadastro o casal e a criança, muitas vezes tem um final feliz. Já as crianças maiores não têm o mesmo destino. porque a maioria não abre mão que o adotado seja um bebê. Mas os maiores quando têm a chance de serem ´escolhidos´ também participam desse processo.



JJ: Como?
Maria Aparecida: Uma criança maior, de certa forma. também escolhe. É muito grande esse amor. Existe uma convivência mútua.



JJ: Qual é o principal problema na adoção tardia?
Maria Aparecida: O medo é ainda o maior empecilho. Mas se há medo, a pessoa não deveria nem pensar em ter filhos. As dificuldades são superadas com os filhos biológicos também. Essa ideia de que filho adotado, depois de uma certa idade dá problemas, é errada. Precisamos lidar com este tabu, com informações, divulgação, esclarecimentos até desmistificar isso.



JJ: E em relação ao grupo de irmãos?
Maria Aparecida: Temos vários grupos de irmãos. Crianças que não têm irmãos são nove. Os demais são grupos de irmãos. A Casa faz questão de manter os vínculos familiares porque todos vieram pelo Poder Judiciário e já têm uma bagagem de muito sofrimento.



JJ: Como é o trabalho de vocês, neste sentido?
Maria Aparecida: Trabalhamos a parte espiritual, somos católicos e passamos para as crianças o conceito dos pais Maria e Deus, que nunca abandonam seus filhos. Começam a acreditar nisso porque muitas coisas acontecem aqui que sentimos ser um milagre. A lei também prevê que se os vínculos não forem quebrados, poderão ser separados os irmãos.



JJ: E com os adolescentes, esse trabalho muda?
Maria Aparecida: A rebeldia é normal. É uma fase de questionamento difícil para os dois lados. Temos nos preocupado para que tenham uma vida social e de convivência. Quando eles completam 14 anos eles são inseridos no mercado de trabalho como ´menor aprendiz´. Trabalhando e estudando facilita essa fase difícil que eles enfrentam.



JJ: Qual seu maior desafio?
Maria Aparecida: Conseguir famílias acolhedoras que tenham um carinho enorme por uma criança ou um adolescente. Conscientizar ainda as mães que não têm condições de ficar com os filhos, especialmente no caso dos bebês. Conscientizar que não somos ninguém para julgá-las, que a lei as protege, que elas continuem a gestação. Precisamos fazê-las entender que não é preciso abandonar os filhos. Que procure o setor técnico do Fórum. Essa criança e essa mãe serão assistidas e terão carinho. Essa mãe será ouvida e atendida e essa criança nem passará por um abrigo, mas seguirá para uma família que a espera. Que não abandone, não jogue na rua. É uma criança que precisa deste gesto de amor que a mãe deve assumir. Se ela não tem condições de ficar com a criança, existem pessoas que têm e querem acolher essa criança.

JJ: Como você vê o futuro da adoção tardia?
Maria Aparecida: Quero acreditar que nossas crianças serão acolhidas, para que vivam esse espaço familiar. Elas veem tantas pessoas, conhecem tanta gente, elas têm o direito de olhar para alguém e dizer: ´pai´, ´mãe´. A maior emoção que tive na vida foi quando ouvi isso dos irmãos que estão hoje em Santa Catarina. Há todo o processo legal de adoção, mas que assumamos um pouco mais, quem sabe um dia a gente consegue.

Fonte: Jornal de Jundiaí
18/7/2010

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